Amor
de verão
Olhava
para aquela pequena e notava nele mesmo um afeto tão forte e
convincente que parecia impossível que ela não o sentisse também.
Como se seu sentimento fosse algo palpável fora de uma subjetividade
interior e fechada. Acreditar que ela não percebia e não
participava de algum modo do mesmo sentimento seria o mesmo que
acreditar que não viam, juntos, aquela parede ali, a dois metros de
distância.
Mas,
logo em seguida, o desespero tomava conta dele: racionalmente, embora
não o sentisse, chegava à fatal conclusão de que tudo estava
dentro e escondido em si; que ela nem sabia que alguém a olhava; que
seus mundos estavam, sim, fechados: o dela separado e distraído; o
dele coberto, evidente só para si mesmo e, logo, inexistente para
ela.
Aquela mulher que
nunca vira antes e
que amava intensamente por esses trinta minutos. Aquela linda pequena
com quem esperara, três pessoas atrás, sua vez na fila do banco.
Voltando
sozinho e quieto pensou que nem sequer a parede existiu para a linda
enquanto ela estava no banco. Por acaso ele notara todas as cadeiras,
cortinas, mesas, lâmpadas, interruptores, detalhes do chão, da sala
em que esperavam? Lembrou-se do rostinho fino, do narizinho bem
desenhado e um pouco arrebitado, da pele branquinha fazendo contraste
com os cabelos negros. Por acaso não era possível que alguém
também o tivesse verdadeiramente notado —
notado
como ele vira a pequena, não o olhar sem significado e exploração
que mal direcionamos a anônimos que cruzam nosso caminho como pano
de fundo e paisagem. Por acaso não era possível que ele também
estivesse alheio a
um mundo do qual fazia parte? Novamente pareceu-lhe muito incrível
que algumas pessoas vissem algumas coisas que outras não pudessem
ver. Ela tinha a mania de morder a bochecha por dentro fazendo um
biquinho encantador para o lado; aqueles lábios finos e bem
desenhados. Não seria o caso de invadir o mundo do outro e fazer
aparecer evidente a realidade? Certamente se houvesse dito "ei,
moça, olha essa parede" passariam a notar a mesma coisa. O que
estava só para ele se
tornaria
para os dois. Dois mundos conectados. Ou o mundo único dela agora
aumentado. Entra no carro, fecha a porta, porém não dá a partida.
Olhando através do para-brisas não olha para as coisas que estão
lá fora. Do coque que ela fizera caiam duas mechas sobre o pescoço
magro. Será que seu sentimento seria tão fácil de mostrar para ela
como a parede? "Ei, moça, olha esse carinho que sinto por
você". Talvez ela não conseguisse ver. "Talvez"?
Certamente ela não conseguiria ver. É preciso ter o olho treinado
para essas coisas. Lembra que quando era criança recebia da mãe a
tarefa de limpar as calçadas. Findo o trabalho, a mãe vinha
inspecionar. Era incrível como ela conseguia ver tanta sujeita que a
ele passara despercebida. Com o tempo aprendera a limpar melhor,
aprendera ver a sujeira que antes deixava para trás. Hoje em dia,
não pode ver o chão de seu apartamento sujo sem que sinta um
impulso quase incontrolável de limpá-lo. Não sabe se a comparação
funcionaria nesse caso. Pode ser que ele mostrasse para ela seu
sentimento, mas ela o desprezasse. E daí que há sujeira? Não
interesso-me por limpar! Mas será que notar a mesma sujeira que a
mãe notara não incluía já perceber uma sujeira que deveria ser
limpa? Será que se ela conseguisse ver o mesmo sentimento que ele
teve não teria fatalmente que ver algo belo e doce e
desejável?
E para ver a mesma coisa, não teria ela que sentir a mesma coisa?
Será que se conseguisse fazê-la ver, seria impossível para ela
permanecer impassível ou sentir aversão? Afinal de contas, não
sentira algo de indiferente e desprezível. Não foi isso que vira.
Lembra-se de um filme em que o ex-namorado maníaco prende e amordaça
a pobre moça desesperada. A explicação que ele sempre repetia,
algo como: "eu só quero que você veja que eu te amo. A gente
foi feito para ficar junto. Por que você não acredita que eu te
amo?" Talvez desesperasse o maníaco o fato de que não viam o
mesmo sentimento. Ele via amor puro, ela via loucura. Será que se,
em uma situação ideal de comunicação plena, os dois tivessem tido
a oportunidade de mostrar um para o outro o que viam eles acabariam
encontrando uma experiência comum? Parece que sim, parece impossível
que duas pessoas —
um
dizendo que a parede é totalmente lisa; o outro, que é toda áspera
—
continuem
olhando e mostrando (veja aquele canto todo enrugado, passe a mão
e veja como não machuca) um ao outro sua percepção sem que acabem
por ver a mesma parede. A não ser que fechem os olhos durante a
discussão. Será que se tivessem muito
tempo
juntos, situação ideal novamente, a pequena acabaria por
convencê-lo que seu carinho e amor não passam de mal-entendidos?
Levanta os olhos que havia posto sobre o volante, a vê saindo de uma
loja a uns 200 metros e caminhando em direção ao ponto de ônibus.
Meudeus, que linda! Não que ela tivesse aquela beleza deslumbrante e
chamativa que faz todos os homens virar o pescoço. Provavelmente ela
não ganharia nenhum concurso de miss Brasil e nem apareceria em
nenhum comercial de televisão. A beleza dela era algo mais
particular, algo mais único, algo que tinha impressão que só ele
via —
quanta
contradição! Não deveria todo mundo conseguir ver? Não importava.
Ele via e a achava mais bela que a miss, mais bela que a moça da
televisão. Um tipo de beleza mais profunda, não sabe explicar. Que
linda! Agora ela espera no ponto de ônibus. A oportunidade perfeita,
até parecia que estava dentro de uma obra de ficção. A vida não
tem dessas coincidências…
Mas fazer o quê? Ir até lá e oferecer uma carona? Instantaneamente
vê com que olhos ela o olharia, como ele apareceria em sua visão.
Não se identificava com aquele que a moça veria quando ele se
aproximasse dela. Aqueles homens que ficam importunando cada mulher
que veem
e tentam criar cantadas baratas: inconvenientes e desprezíveis! Não,
não queria aparecer para ela o que realmente não era. Como ser
diferente e mostrar-se de verdade? Não era a primeira parte dessa
pergunta que aqueles oportunistas baixos sempre se fazem —
um
modo diferente de surpreender a preza? O ônibus dela chegaria a
qualquer momento. Se de algum modo pudesse realmente conversar com
ela, se pudesse francamente fazê-la ver ou pelo menos mostrar o que
via… O ônibus chega, ela é a quarta ou quinta na fila. O
primeiro, o segundo, o terceiro entra. Quantas cantadas importunas a
pobre não tem que ouvir todos os dias? Um bando de machos brutos e
no cio rodeando a delicada flor. Ela sobe os degraus, a porta se
fecha. Ele ainda tem um movimento impulsivo de ligar o carro, seguir
o ônibus, ver onde ela desembarcará… Afinal de contas, o que
sentiu não era coisa ordinária; precisava fazê-la ver. Mas aí sua
mão larga a chave, reclina-se novamente no banco. Ela lhe mostraria
com um simples olhar quão absurdo e inconveniente era seu
sentimento. De certo modo, ela já o fez. Ele agora olha o ônibus
que se afasta cada vez mais. Parece ainda conseguir divisá-la —
linda!
linda! - lá dentro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário