quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Amor de verão

Amor de verão

Olhava para aquela pequena e notava nele mesmo um afeto tão forte e convincente que parecia impossível que ela não o sentisse também. Como se seu sentimento fosse algo palpável fora de uma subjetividade interior e fechada. Acreditar que ela não percebia e não participava de algum modo do mesmo sentimento seria o mesmo que acreditar que não viam, juntos, aquela parede ali, a dois metros de distância.

Mas, logo em seguida, o desespero tomava conta dele: racionalmente, embora não o sentisse, chegava à fatal conclusão de que tudo estava dentro e escondido em si; que ela nem sabia que alguém a olhava; que seus mundos estavam, sim, fechados: o dela separado e distraído; o dele coberto, evidente só para si mesmo e, logo, inexistente para ela. Aquela mulher que nunca vira antes e que amava intensamente por esses trinta minutos. Aquela linda pequena com quem esperara, três pessoas atrás, sua vez na fila do banco.


Voltando sozinho e quieto pensou que nem sequer a parede existiu para a linda enquanto ela estava no banco. Por acaso ele notara todas as cadeiras, cortinas, mesas, lâmpadas, interruptores, detalhes do chão, da sala em que esperavam? Lembrou-se do rostinho fino, do narizinho bem desenhado e um pouco arrebitado, da pele branquinha fazendo contraste com os cabelos negros. Por acaso não era possível que alguém também o tivesse verdadeiramente notado notado como ele vira a pequena, não o olhar sem significado e exploração que mal direcionamos a anônimos que cruzam nosso caminho como pano de fundo e paisagem. Por acaso não era possível que ele também estivesse alheio a um mundo do qual fazia parte? Novamente pareceu-lhe muito incrível que algumas pessoas vissem algumas coisas que outras não pudessem ver. Ela tinha a mania de morder a bochecha por dentro fazendo um biquinho encantador para o lado; aqueles lábios finos e bem desenhados. Não seria o caso de invadir o mundo do outro e fazer aparecer evidente a realidade? Certamente se houvesse dito "ei, moça, olha essa parede" passariam a notar a mesma coisa. O que estava só para ele se tornaria para os dois. Dois mundos conectados. Ou o mundo único dela agora aumentado. Entra no carro, fecha a porta, porém não dá a partida. Olhando através do para-brisas não olha para as coisas que estão lá fora. Do coque que ela fizera caiam duas mechas sobre o pescoço magro. Será que seu sentimento seria tão fácil de mostrar para ela como a parede? "Ei, moça, olha esse carinho que sinto por você". Talvez ela não conseguisse ver. "Talvez"? Certamente ela não conseguiria ver. É preciso ter o olho treinado para essas coisas. Lembra que quando era criança recebia da mãe a tarefa de limpar as calçadas. Findo o trabalho, a mãe vinha inspecionar. Era incrível como ela conseguia ver tanta sujeita que a ele passara despercebida. Com o tempo aprendera a limpar melhor, aprendera ver a sujeira que antes deixava para trás. Hoje em dia, não pode ver o chão de seu apartamento sujo sem que sinta um impulso quase incontrolável de limpá-lo. Não sabe se a comparação funcionaria nesse caso. Pode ser que ele mostrasse para ela seu sentimento, mas ela o desprezasse. E daí que há sujeira? Não interesso-me por limpar! Mas será que notar a mesma sujeira que a mãe notara não incluía já perceber uma sujeira que deveria ser limpa? Será que se ela conseguisse ver o mesmo sentimento que ele teve não teria fatalmente que ver algo belo e doce e desejável? E para ver a mesma coisa, não teria ela que sentir a mesma coisa? Será que se conseguisse fazê-la ver, seria impossível para ela permanecer impassível ou sentir aversão? Afinal de contas, não sentira algo de indiferente e desprezível. Não foi isso que vira. Lembra-se de um filme em que o ex-namorado maníaco prende e amordaça a pobre moça desesperada. A explicação que ele sempre repetia, algo como: "eu só quero que você veja que eu te amo. A gente foi feito para ficar junto. Por que você não acredita que eu te amo?" Talvez desesperasse o maníaco o fato de que não viam o mesmo sentimento. Ele via amor puro, ela via loucura. Será que se, em uma situação ideal de comunicação plena, os dois tivessem tido a oportunidade de mostrar um para o outro o que viam eles acabariam encontrando uma experiência comum? Parece que sim, parece impossível que duas pessoas um dizendo que a parede é totalmente lisa; o outro, que é toda áspera continuem olhando e mostrando (veja aquele canto todo enrugado, passe a mão e veja como não machuca) um ao outro sua percepção sem que acabem por ver a mesma parede. A não ser que fechem os olhos durante a discussão. Será que se tivessem muito tempo juntos, situação ideal novamente, a pequena acabaria por convencê-lo que seu carinho e amor não passam de mal-entendidos? Levanta os olhos que havia posto sobre o volante, a vê saindo de uma loja a uns 200 metros e caminhando em direção ao ponto de ônibus. Meudeus, que linda! Não que ela tivesse aquela beleza deslumbrante e chamativa que faz todos os homens virar o pescoço. Provavelmente ela não ganharia nenhum concurso de miss Brasil e nem apareceria em nenhum comercial de televisão. A beleza dela era algo mais particular, algo mais único, algo que tinha impressão que só ele via quanta contradição! Não deveria todo mundo conseguir ver? Não importava. Ele via e a achava mais bela que a miss, mais bela que a moça da televisão. Um tipo de beleza mais profunda, não sabe explicar. Que linda! Agora ela espera no ponto de ônibus. A oportunidade perfeita, até parecia que estava dentro de uma obra de ficção. A vida não tem dessas coincidências Mas fazer o quê? Ir até lá e oferecer uma carona? Instantaneamente vê com que olhos ela o olharia, como ele apareceria em sua visão. Não se identificava com aquele que a moça veria quando ele se aproximasse dela. Aqueles homens que ficam importunando cada mulher que veem e tentam criar cantadas baratas: inconvenientes e desprezíveis! Não, não queria aparecer para ela o que realmente não era. Como ser diferente e mostrar-se de verdade? Não era a primeira parte dessa pergunta que aqueles oportunistas baixos sempre se fazem um modo diferente de surpreender a preza? O ônibus dela chegaria a qualquer momento. Se de algum modo pudesse realmente conversar com ela, se pudesse francamente fazê-la ver ou pelo menos mostrar o que via… O ônibus chega, ela é a quarta ou quinta na fila. O primeiro, o segundo, o terceiro entra. Quantas cantadas importunas a pobre não tem que ouvir todos os dias? Um bando de machos brutos e no cio rodeando a delicada flor. Ela sobe os degraus, a porta se fecha. Ele ainda tem um movimento impulsivo de ligar o carro, seguir o ônibus, ver onde ela desembarcará… Afinal de contas, o que sentiu não era coisa ordinária; precisava fazê-la ver. Mas aí sua mão larga a chave, reclina-se novamente no banco. Ela lhe mostraria com um simples olhar quão absurdo e inconveniente era seu sentimento. De certo modo, ela já o fez. Ele agora olha o ônibus que se afasta cada vez mais. Parece ainda conseguir divisá-la linda! linda! - lá dentro.

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